segunda-feira, 19 de novembro de 2012

A CASA DE BONECAS

Katherine Mansfield

Quando a querida senhora Hay voltou para a cidade após ter passado uns dias com os Burnell, ela mandou para as crianças uma casa de boneca. Era tão grande que o entregador e Pat carregaram-na para o quintal, e lá ficou, escorada em duas caixas de madeira ao lado da porta do celeiro. Ela não poderia se estragar: era verão. E além disso, talvez o cheiro de tinta tivesse desaparecido quando fosse a hora de levá-la par dentro. Pois, realmente, o cheiro de tinta que vinha daquela casa de bonecas ("Que encantadora a velha senhora Hay! Tão encantadora e generosa")... mas o cheiro de tinta era forte o bastante par deixar qualquer um seriamente doente, na opinião do tio Beryd. Mesmo antes de se retirar a embalagem. E quando foi retirada...
Lá estava a casa de bonecas, de um verde escuro, oleoso, espinafre, realçado com amarelo brilhante. Suas dias sólidas chaminezinhas, coladas mo telhado, pintadas de vermelho e branco , e a porta, reluzente de verniz amarelo, era como uma pequena barra de caramelo. Quatro janelas, janelas de verdade, eram divididas em painéis por uma grossa risca verde. Havia de fato uma pequena varanda, com grandes gomos de tinta coagulada pendendo ao longo do beiral.
Que casinha mais perfeita! Quem iria se importar com o cheiro? Era parte da alegria, parte da novidade.
- Alguém abra isso logo!
O gancho lateral estava preso com firmeza. Pat o fez saltar com seu canivete e toda a frente da casa deslizou para trás e... lá estavam todos, abraçando num só olhar a sala de estar e a sala de jantar, a cozinha e os dois quartos. Esse é o jeito de uma casa se abrir! Por que todas a casas não se abrem assim! É muito mais excitante do que espiar pela fenda de uma porta para ver um reles vestíbulo com um porta-chapéus e duas sombrinhas! É isso o que se deseja saber de uma casa quando se põe a mão na maçaneta, não é? Talvez seja desse modo que Deus abre casas altas horas quando está dando um passeio calmo com um anjo...
- O-oh!
As filhas dos Burnell exclamaram como se estivessem desesperadas. Era incrivelmente maravilhoso. Era demais para elas. Nunca tinham visto nada parecido em suas vidas. Todos os cômodos tinham papel de parede. Havia quadros nas paredes, pintados sobre o papel, com molduras douradas e tudo. Todo piso, com exceção da cozinha, era coberto de carpete vermelho. Cadeiras de pelúcia vermelha na sala de estar,verde na sala de jantar. Mesas,camas com lençóis de verdade,um berço, um fogão, um um aparador com minúsculos pratos e uma grande jarra. mas aquilo de que Kezia gostou mais, aquilo que gostou mesmo, foi o lampião. Ele estava no centro da mesa de jantar, um delicado lampiãozinho de âmbar com um globo branco. Estava inclusive cheio, prontinho para ser aceso, embora, é claro, não fosse conveniente acendê-lo. Mas havia algo dentro dele que parecia querosene e que se mexia quando era sacudido.
O boneco-pai e a boneca-mãe, estatelados e rijos como se tivessem desmaiados na sala de estar, e seus dois filhinhos adormecidos no primeiro andar, eram na verdade grandes demais para a casa de bonecas. Pareciam destoar ali. Mas o lampião era perfeito. Ele parecia sorrir para Kezia, dizendo-lhe: " Eu moro aqui" o lampião era de verdade. As filhas do Burnell não sabiam como ir mas de pressa ruma à escola na manhã seguinte. Ardiam por contar a todo mundo, por descrever, por... bem... por se gabar na casa de bonecas antes que a sineta tocasse.
-Eu é que vou contar - disse Isabel-,porque sou a mais velha. Vocês duas podem falar depois. Mas eu conto primeiro.
Não havia o que contestar. Isabel era mandona, mas sempre tinha a razão, e Lottie e Kezia conheciam bem de mais os poderes que cabiam á mais velha. Passaram rapidamente pelos espessos ranúnculos á beira da estrada sem nada a dizer.
-E sou eu quem vou escolher quem vai lá em casa para ver primeiro. Mamãe disse que eu podia.
Afinal,tinha sido combinado que, enquanto a casa de bonecas permanecesse no quintal, elas poderiam convidar as meninas da escola, duas por vez, para vir e olhar. Não para ficar para o chá,é claro, ou para sair fuçando pela casa . Mas só para ficarem quietas de pé no quintal, enquanto Isabel apontava as belezas - Lottie e Kezia pareceram satisfeitas.
Mas apesar de toda a rapidez, no momento em que alcançaram a cerca coberta de alcatrão do pátio dos meninos, a sineta começou a treinar. Tiveram tempo apenas de arrancar os chapéus e entrar na fila antes de ser feita a chamada. Não importa. Isabel tentou compensar aquilo assumindo um ar importante e misterioso, e cochichando com a mão na boca para as meninas perto de si:
- Tenho uma coisa para lhes contar no recreio.
Chegou o recreio e Isabel foi cercada. as meninas de sua classe quase brigaram para colocar os braços em torno dela, para puxa-la de lado, par bajula-la com sorrisos, para ser sua melhor amiga. Uma verdadeira corte se formara à sua volta sob os enormes pinheiros ao lado do pátio. Acotovelando-se, dando risinhos juntas, as meninas se apinharam perto dela. E as duas únicas que ficaram fora do círculo foram as duas que estavam sempre fora, as pequenas Kelvey. Elas sabiam que era melhor não se aproximar das Burnell.
O fato é que a escola que as filhas dos Burnell frequentavam estava longe de se o tipo de lugar que seus pais tentam escolhido tivesse havido escolha. Mas não houve. Era a única escola num raio de quilômetros. E a consequência era que todas as crianças das redondezas - as filhas do juiz, as do médico, os filhos do dono do armazém e do leiteiro - eram forçadas a se misturar. Sem falar que também havia um número igual de garotos rudes e grosseiros. Mas a linha divisória tilha de ser traçada em algum lugar. E foi traçada nas Kelvey. Muitas das crianças incluindo as Burnell, não tinham permissão sequer de falar com elas. Passavam pelas Kelvey com o nariz empinado, e como elas ditavam a moda em tudo o que dizia respeito a comportamento, todo mundo evitava as Kelvey. Até mesmo a professora tinha um tom de voz especial para elas, e um sorriso especial para as outras crianças quando Li Kelvey se aproximava de sua mesa com um ramo de flores horrivelmente vulgares.

(continua)